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Um ano depois: como o RS se recupera da tragédia da enchente

O Agro Estadão voltou a conversar com afetados pelas inundações de maio de 2024; clima extremo ainda desafia produtores gaúchos e ameaça sucessão no campo

Mônica Rossi | Porto Alegre e Paloma Custódio | Guaxupé (MG) | Atualizada às 11h45

07/05/2025 - 08:00

Produtores celebram boa safra do milho para silagem, mas estoque de ração granja leiteira ainda não normalizou. Foto: Ricardo André Bley/Arquivo Pessoal
Produtores celebram boa safra do milho para silagem, mas estoque de ração granja leiteira ainda não normalizou. Foto: Ricardo André Bley/Arquivo Pessoal

Alexandre Forster tem propriedade rural em Itaqui, no Rio Grande do Sul, e amarga perdas pelo quinto ano consecutivo. O causador dos prejuízos nas lavouras e na pecuária de corte? O clima. 

Uma enchente nunca antes vista e quatro anos de estiagem, incluindo a safra 2024/2025, deixam o gaúcho preocupado com o futuro. “Os filhos dos agricultores e pecuaristas estão vendo as temporadas difíceis que os pais estão enfrentando e não querem mais saber do trabalho no campo”, explica, lembrando que até mesmo seus dois filhos escolheram carreiras longe da lida com a terra. 

Em maio de 2024, quando as lavouras de soja tardia estavam submersas pela enchente, o produtor concedeu uma entrevista ao Agro Estadão. Na época, ele já previa prejuízos na casa dos 70%, o que se confirmou após o acúmulo de 1.600 mm de chuva na região em dois meses. De lá para cá, ele teve o pagamento do seguro das plantações negado pela seguradora e viu muitas promessas das autoridades ficarem pelo caminho. 

Forster critica a demora e a falta de efetividade dos governos em prorrogar as dívidas dos produtores, o que, segundo ele, está gerando muita angústia no campo. “O governo do RS deixou de pagar juros e dívidas com a União por três anos. E o próprio governador disse para a União que só essa medida não resolveria. Como eles querem que o produtor, que é a ponta do iceberg, consiga? Sendo que aqui na nossa região já tivemos problemas em cinco safras?”, indaga o também diretor da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado do RS (Aprosoja-RS). 

Para o produtor gaúcho, o necessário agora seria um seguro rural melhor e a securitização de dívidas, recurso que já foi utilizado nos anos 1990. “Nós não estamos inventando a roda. Há anos peguei uma securitização e já está paga. Então, por que não dá para pegar o que funcionou no passado e fazer novamente? A grande questão é vontade política”, comenta.

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Apesar da preocupação com o custeio das próximas safras, Forster teme mais pela continuidade do RS como estado relevante na agricultura nacional. “A maior perda vai ser o melhor material humano. Anota que estou te dizendo: vai ter um apagão de mão de obra no campo. A gente que está tocando a coisa, está enxergando os gargalos. Isso aí vai ter um custo para o Estado enorme”, comenta. 

No vídeo a seguir, Forster fala sobre a dificuldade de encontrar mão de obra para trabalhar nas propriedades rurais gaúchas.

Superação e desafios na pecuária leiteira

Quando o criador de gado leiteiro, Ricardo André Bley, fez seu relato ao Agro Estadão em 04 de maio do ano passado, a mesma questão de sucessão dos negócios familiares já estava presente. Ele tocava a granja fundada pelo pai, mas a impotência diante da catástrofe climática — que deixou danos em 96% das cidades gaúchas — fez o produtor de Rolante (RS) duvidar do futuro da família no campo. Passados 365 dias, apesar do trauma, Bley está mais otimista e focado em se recuperar. 

As perdas, considerando a queda na produtividade mensal de leite e a morte de animais, ultrapassaram os R$ 200 mil, mas muitos reflexos continuam presentes na lida diária. Bley conta que perdeu todo estoque de alimentação das vacas leiteiras e mesmo com uma boa safra de milho forrageiro, ele ainda precisa complementar a alimentação dos animais. Além disso, os gastos com a saúde do plantel aumentaram muito depois do contato com a água da inundação. 

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Granja alagada em Rolante (RS) em maio de 2024 (esq.) e em registro recente (dir.). Foto: Ricardo André Bley/Arquivo Pessoal

A produtividade das 60 vacas de leite nunca voltou ao patamar anterior à tragédia. “Antes da enchente a propriedade produzia entre 25 a 30 mil litros de leite por mês, e logo após a produção caiu para cerca de 15 mil litros. De outubro em diante, conseguiram estabelecer o patamar de 22 mil litros”, relata.

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Bley diz que não gosta de pensar muito naqueles dias de chuva e tristeza, mas lembra com carinho do apoio e das doações que recebeu de amigos, fornecedores e entidades do setor. Apesar disso, ainda não conseguiu recuperar o conforto que a casa onde vive com a esposa tinha antes da água chegar. “Faltam móveis e eletrodomésticos. Essa parte a gente deixou para depois, né? Priorizamos retomar a propriedade”, conta com a voz embargada.  

Para evitar que a situação se repita, o casal planeja construir um pavilhão para abrigar os animais em um lugar alto, mas enfrenta dificuldades para financiar a obra e para fazer um aterro no espaço, o trabalho depende de apoio da prefeitura, segundo o pecuarista.

Ricardo e a esposa tocam granja de produção de leite no interior de Rolante (RS). Foto: Ricardo André Bley/Arquivo Pessoal

Recomeço em novo endereço e esperança

Entre os relatos mais dramáticos que a reportagem do Agro Estadão ouviu em maio de 2024, está o do agricultor familiar Mauro Soares. Foram três dias dividindo o forro da casa com a esposa, a mãe e os cães da família. Das 44 cabeças de vacas e dos 15 suínos da raça Moura, apenas uma porca sobreviveu ao avanço das águas. A vida do casal recomeçou em uma propriedade de três hectares emprestada por um familiar. 

A granja antiga, também em Cruzeiro do Sul, no Vale do Taquari, foi abandonada. “Ficou muito forte o trauma das perdas, a gente vendo os animais se perderem, se afogarem, indo embora e a gente não conseguia fazer nada. Para a gente voltar lá naquela propriedade e restabelecer a produção, isso é muito difícil. Confesso que isso é muito difícil de acontecer”, lembra.

Soares diz que espera receber ajuda governamental para se restabelecer em um local seguro, longe do risco de enchentes. Sem apoio financeiro público, ele relata que está tendo dificuldades. “O agricultor, quando perde a sua produção, perde o seu trabalho também. Ele não tem mais renda. Então, é a mesma coisa que ficar desempregado”, explica.

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Por enquanto, os esforços estão sendo para manter a família alimentada, praticando a agricultura de subsistência. “O restabelecimento da produção vai se dar um pouco ao longo do tempo. Estou reformando outra propriedade onde vou instalar a criação de suínos. Já tenho algumas matrizes, mas tudo adquiri ou consegui emprestado depois da enchente. Inclusive a Embrapa se destacou como uma parceira para me ajudar, porque a gente já tinha uma relação de trabalho antes devido ao meu trabalho com a raça Moura [de suínos]. Eles vão me trazer mais alguns exemplares para seguirmos com a raça, já que são poucos que criam a Moura”, relata Soares.

Os últimos 12 meses foram de mente e braços ocupados na retomada da vida e do trabalho. “A gente tem que transferir o pensamento para outro lugar, ter a vontade de continuar. A gente estando ocupado com o dia a dia, vai acabando que esquece um pouco aqueles traumas, aqueles prejuízos, aquele processo que a gente sofreu. Hoje o processo é reconstrução, não está tão difícil, estou otimista!”, finaliza.

Mais de 206 mil propriedades rurais afetadas pela enchente

Segundo a Emater/RS-Ascar, mais de 206 mil propriedades rurais gaúchas foram afetadas pelas perdas na produção e na infraestrutura em decorrência da enchente do ano passado. 

Conforme dados atualizados em 24 de abril deste ano pela Defesa Civil, a tragédia climática no Rio Grande do Sul afetou cerca de 2,4 milhões de pessoas em 478 municípios. Ao todo, foram confirmadas 184 mortes, 806 pessoas ficaram feridas e 25 seguem desaparecidas.

Plantação de arroz agroecológico inundada em Viamão em 2024. Foto: MST-RS/Divulgação
Plantação de arroz agroecológico inundada em Viamão em 2024. Foto: MST-RS/Divulgação

Além disso, aproximadamente 2,7 milhões de hectares de solo foram comprometidos por erosão hídrica, resultando em perda de fertilidade em 405 municípios gaúchos.

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De acordo com a Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), os prejuízos somam cerca de 7,2 milhões de toneladas de grãos, o que representa um impacto econômico de R$ 12,09 bilhões. Esse valor não inclui os danos incalculáveis à pecuária, que também foi fortemente atingida.

Programa destinará R$ 900 mi para a agricultura familiar 

Em resposta à crise, foi aprovado na Assembleia Legislativa, nessa terça-feira, 06, um programa do governo estadual gaúcho que destinará R$ 900 milhões para a agricultura familiar enfrentar os desafios impostos pelas mudanças climáticas. Serão R$ 450 milhões em repasses diretos (até R$ 30 mil por unidade) e igual valor para compra de equipamentos.

O Programa de Recuperação Socioprodutiva, Ambiental e de Incremento da Resiliência Climática beneficiará 15 mil propriedades. A iniciativa está estruturada em quatro eixos — transferências diretas de recursos, assistência técnica e extensão rural, patrulhas agrícolas mecanizadas e parcerias institucionais. As inscrições ocorrerão nos escritórios municipais da Emater-RS/Ascar após sanção do governador.

A Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação (Seapi) informou em nota que destinou na época da enchente R$ 154 milhões para a recuperação de estradas rurais.

Já a Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR) adotou uma série de medidas emergenciais, como o subsídio de 100% da parcela referente à tecnologia transgênica das sementes do Programa Troca-Troca – Safra 2024/2025 (etapa I), beneficiando 15.522 agricultores familiares com um investimento de R$ 16 milhões. Também foi concedida anistia na etapa Safrinha do programa, com recursos de R$ 2,3 milhões, contemplando 3.430 agricultores e 12.267 sacas de sementes.

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Além disso, a SDR investiu R$ 12,1 milhões na segunda etapa do Programa de Recuperação de Solo, criado especificamente para atender às demandas emergenciais causadas pelas enchentes no Vale do Taquari, em 2023.

“Combo de problemas climáticos”

O economista-chefe da Farsul, Antonio da Luz, disse à reportagem que as inundações do ano passado só agravaram os problemas climáticos que os produtores gaúchos já vinham enfrentando desde 2020 com as estiagem. “É um combo de problemas climáticos. Isso fez com que o maior problema do produtor rural seja a dívida”, pontua.

Segundo ele, cerca de 38 mil produtores renegociaram aproximadamente R$ 6 bilhões em dívidas com instituições financeiras, assumindo juros mensais entre 2% e 3%. “Mesmo que tenham plantado a safra 2024/25, esses produtores assumiram uma dívida impagável para ficarem adimplentes”, alerta.

O presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no RS (Fetag), Carlos Joel da Silva, também critica a insuficiência das medidas de apoio. “O governo deu prorrogação para as parcelas do ano passado, mas teve produtor que perdeu toda a infraestrutura. Ele está com a dívida no banco por mais quatro, cinco, seis anos e não sabe o que fazer, porque não consegue pagar”, declarou ao Agro Estadão.

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Mauro Soares de Cruzeiro do Sul (RS), retomou agricultura e pecuária de subsistência em novo local. Foto: Mauro Soares/Arquivo Pessoal

Nesta terça-feira, 6, a Farsul divulgou uma nota técnica revelando que os produtores rurais gaúchos somam um endividamento total de R$ 72,82 bilhões. Desse montante, R$ 1,26 bilhão já está em atraso, valor considerado elevado para o período, de acordo com a entidade.

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Estiagens trazem prejuízos ainda maiores à economia gaúcha

Apesar dos efeitos devastadores das enchentes, o economista-chefe da Farsul alerta que a estiagem causa um impacto econômico ainda mais severo. Em 2024, o PIB do Rio Grande do Sul cresceu 4,9%, puxado pela recuperação agropecuária. O valor ficou acima dos 3,4% registrados no país. No entanto, Antonio da Luz destaca que a base de comparação é fraca: “Esse crescimento é em relação a 2023, que foi um ano de estiagem muito forte. E as estiagens são muito piores que as enchentes para a economia gaúcha”, ressalta.

Com a seca que atingiu o estado no início de 2025 e as perdas agrícolas acumuladas, a Farsul projeta que o PIB do RS deve cair abaixo do nível registrado em 2013, acentuando o desafio econômico enfrentado pelo setor rural.

Entidades do setor rural gaúcho e deputados federais estão em tratativas para uma possível prorrogação das dívidas dos produtores rurais gaúchos. A medida depende da aprovação da Secretaria do Tesouro Nacional.

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