José Carlos Vaz
Advogado e consultor, mestre em direito constitucional, ex-secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura
Esse texto trata de uma opinião do colunista e não necessariamente reflete a posição do Agro Estadão
Opinião
José Carlos Vaz: "Política agrícola, safra vai, safra vem…"
O produtor que sofreu perdas decorrentes de causas naturais, fortuitas ou de força maior, tem o direito de renegociar prazos, mas só se não tiver reservas financeiras que lhe permitam cumprir com os compromissos com terceiros, assegurar a sua manutenção, e promover a formação da nova safra.
6 minutos de leitura 15/03/2024 - 18:01
No primeiro artigo para o Agro Estadão “Política agrícola: crise? ajustes? quebras?”, declarei um propósito para meus textos: escrever sobre gargalos e aprimoramentos da política agrícola, com base nas experiências diversificadas que tive, relacionadas com o setor rural. O que já naquela oportunidade não se efetivou, como aliás reconheci, dizendo que aquele arrazoado seria “casuístico, influenciado pela conjuntura do segmento de grãos – a crise de produção e/ou renda e/ou liquidez dos produtores rurais.
De lá para cá, a situação pouco mudou. Os produtores praticamente terminaram a colheita em todo o Brasil. Em toneladas, as compras chinesas foram expressivas e a movimentação das cargas foi intensa no primeiro bimestre. Governo e parlamentares sabem que terão que ser tomadas medidas, e preparam seus argumentos e artifícios para a barganha de recursos públicos e apoios políticos. Não há como não haver ampla prorrogação das parcelas de crédito rural para investimento; prorrogação de crédito rural para custeio mediante análise caso a caso; disponibilização de uma linha de capital de giro de longo prazo (aqui há dúvidas quanto ao uso de variação cambial e de taxas positivas, mas razoáveis) para que os credores comerciais renegociem a CPR.
Todos os instrumentos de política agrícola estão operacionalmente anacrônicos, mas os subsídios irresponsáveis embutidos nas taxas de juros estabelecidas para as operações de investimento nos últimos 4 anos safra são a principal dificuldade que os técnicos encontram para viabilizar as renegociações. E as regras prudenciais inadequadas para o crédito rural trarão sequelas. Na imprensa, credores dos produtores suscitam que a “indústria de recuperação judicial vai encarecer e reduzir o financiamento das próximas safras”, e que “os contratos firmados com os produtores, e as garantias por eles vinculadas, não devem integrar uma renegociação forçada”.
Parece que, no ano safra 2023/2024 o negócio “fertilizantes” e o negócio “defensivos” não foram tão bons para as indústrias e as revendas como nos períodos anteriores. Mas o de “tradings” parece ter ido muito bem, afinal, cinco ou seis “CEO” de multinacionais definem o preço em um call de 10 minutos. O negócio “produção” parece ter voltado aos níveis de rentabilidade de 5 anos atrás: margem positiva, mas mais exigente de boa gestão.
O produtor com mais liquidez fará a transposição das obrigações que seriam pagas com o resultado da safra 2023/2024 com seus recursos próprios. Vida que segue.
Os demais, sem tanta liquidez, vão se valer das prorrogações do crédito rural, com maior ou menor eficiência e presteza do governo e dos bancos, que para os pequenos produtores que usam pouco recurso de “mercado” trarão resultado satisfatório – os custeios estarão assegurados e os novos investimentos serão reduzidos. Para os mega produtores, ter prorrogação ou não do crédito rural não tem efeito nenhum, pois na sua matriz financeira predominam os recursos próprios e os de “mercado”. Vão pagar ou refinanciar.
O problema está nos produtores “medianos”, uma categoria que inclui médios produtores mais vulneráveis a problemas de renda, pois têm menos reservas e não contam com a proteção da política agrícola e produtores de maior porte, mas com histórico de fragilidade financeira, ou seja, já não estavam bem nos anos das “vacas gordas”. Aqui é que se dá a polêmica quanto à recuperação judicial.
Se o produtor rural conseguir demonstrar que os prazos de exigência das dívidas são incompatíveis com as receitas efetivas, consideradas a sua manutenção e as despesas do próximo ciclo, ele tem direito a repactuar os prazos.
Isso estava escrito faz 4 mil anos no Código de Hamurabi: “Se alguém tem um débito a juros, e uma tempestade devasta o seu campo ou destrói a colheita, ou por falta d’água não cresce o trigo no campo, ele não deverá nesse ano dar trigo ao credor, deverá modificar sua tábua de contrato e não pagar juros por esse ano”. E consta desde 1916 no Código Civil Brasileiro na minha leitura com o seguinte sentido: o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, cujos efeitos não lhe era possível evitar ou impedir, se expressamente não se houver por eles responsabilizado, ou, se ao fazê-lo ficou sujeito ao puro arbítrio do credor.
Só que o médio produtor normalmente não é pessoa jurídica, com segregação patrimonial e financeira entre empreendimento e o restante dos seus bens. Não será fácil ter sucesso na recuperação judicial, mas pelo menos fará o credor sentar-se à mesa para negociar, o que já deveria ter feito, pois o caminho da boa-fé e da razoabilidade é sempre o melhor.
Isso se os juízes não forem proibidos pelo CNJ de “ao aplicar o ordenamento jurídico, [atender] aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência” (CPC), e de considerar que “a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica” (lei 11.101/2005).
Para piorar, os produtores médios não têm força econômica e política, e têm sido esquecidos pelas suas representações sindicais. Sem força política e econômica é muito difícil obter decisões judiciais paradigmáticas a partir dos tribunais regionais federais, ou alterações na legislação aplicável ao crédito, às garantias e à política agrícola.
Quanto mais rápido as medidas públicas forem tomadas, anunciadas e, principalmente, efetivadas pelos bancos, melhor será.
Qualquer atraso num empréstimo bancário, anotação em cadastro restritivo ou registro de protesto causa suspensão de limite de crédito, vencimento antecipado de dívidas, anotações negativas nas futuras análises de risco. Ou seja: um “pedregulho” pode fazer a carreta tombar. As formas de caracterização da capacidade ou da incapacidade de pagamento de um produtor rural, e do alongamento da sua dívida, estão definidas para o agente financeiro, no crédito rural, mas não nas relações contratuais dentro do chamado “sistema privado de financiamento”.
Como o “sistema privado de financiamento” tende a ser a maior fonte de recursos dos produtores no futuro, na medida em que será consolidado como principal gerador de direitos creditórios a serem oferecidos a investidores, por meio dos mercados de capitais, é necessário suprir aquelas lacunas, que implicarão em desgastes na relação produtor e banco/fornecedor/comprador, aumento de custos e perdas financeiras para todos os intervenientes, mesmo quando a abrangência das frustrações de renda for pequena.
Se o produtor tiver reservas financeiras que lhe permitam cumprir com os compromissos com terceiros, assegurar a sua manutenção, e promover a formação da nova safra, não deve fazer uso do direito de renegociar prazos, pois vai prejudicar o seu “rating” de crédito e a continuidade das relações negociais com os credores e fornecedores. O calendário agronômico avança e o produtor rural precisa saber se terá crédito ou conflito judicial, e quanto terá de recursos próprios e de terceiros (bancos/traders/mercado de capitais) para a próxima safra.
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