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Celso Moretti

Engenheiro Agrônomo, ex-presidente da Embrapa

Esse texto trata de uma opinião do colunista e não necessariamente reflete a posição do Agro Estadão

Opinião

A Arca de Noé do agro brasileiro

Segundo a narrativa do dilúvio de Gênesis, Deus deu instruções a Noé para construir uma arca e salvar sua família e animais contra o dilúvio

Foto: Adobe Stock
Foto: Adobe Stock

O agro brasileiro possui sua Arca de Noé. É o banco genético da Embrapa, localizado em Brasília, DF. Entre os mais de 1700 existentes, é o quinto maior do mundo. Lá está armazenada uma riqueza que, talvez, seja maior do que todo o dinheiro guardado no Banco Central do Brasil. A estrutura tem capacidade de armazenar milhões de amostras de plantas, animais e microrganismos de interesse da agricultura e pecuária brasileira. Sua importância é inestimável. Ela é parte da garantia de segurança alimentar das gerações atuais e futuras do país. De tão relevante, pode ser considerada uma estrutura sensível, de grande importância para a segurança nacional.   

É na Arca de Noé brasileira que cientistas vão buscar, diariamente, diversidade genética para apoiar na solução de problemas da agricultura. Os desafios são os mais variados. Vão desde encontrar genes que podem auxiliar no combate a pragas e doenças nos mais variados cultivos e criações até achar tipos de plantas adaptadas a temperaturas elevadas e à seca. Um dos mais recentes exemplos de sucesso desta busca incessante é o trigo tropical. Foi estudando minuciosamente o banco genético de trigo que pesquisadores da Embrapa encontraram materiais originários do México que possuíam adaptação a altas temperaturas. Os pesquisadores então introduziram esses materiais no programa de melhoramento genético do cereal, que já tem mais de 40 anos. Foram cruzando variedades altamente produtivas com outras com adaptação ao clima tropical. E foram trazendo o trigo, que surgiu no Crescente Fértil, para regiões cada vez mais próximas ao Equador.

O cereal, um dos mais consumidos no mundo, é a única commodity importada pelo Brasil, uma potência agrícola e ambiental. Em 2019 a produção brasileira foi de aproximadamente 6 milhões de toneladas, quase metade da demanda nacional. Com a guerra na Ucrânia, que elevou os preços às alturas, e o advento do trigo tropical, o Brasil produziu na safra 2022/23 quase que a totalidade de sua demanda interna. Dados estatísticos indicam que o Brasil não só pode ser autossuficiente como pode se tornar exportador do cereal nos próximos anos. E isso tudo sem a necessidade de desmatar um milímetro quadrado sequer dos cerrados, o segundo maior bioma brasileiro. A razão é simples: existem aproximadamente quatro milhões de hectares de terra nos cerrados que são aptas ao cultivo de trigo e que estão em áreas já utilizadas pela agricultura. Com tecnologia, podem ser incorporadas para a produção do cereal.    

As amostras no banco genético estão organizadas em mais de 200 coleções biológicas de plantas, animais e microrganismos. As coleções de plantas (soja, milho, trigo, arroz, feijão, centeio, cevada, aveia, milheto, etc) estão armazenadas na forma de sementes, em tubos de ensaio (in vitro) e na forma de DNA. Estão armazenadas em câmaras frias a -18 oC. O banco genético animal possui sêmen, embriões, tecidos e DNA armazenados em tanques de nitrogênio líquido, a -175 oC. São quase 2 milhões de amostras de dezenas de espécies diferentes de animais (gado bovino, caprinos, ovinos, aves, suínos, peixes, equinos etc). O banco genético possui também uma coleção valiosíssima de microrganismos que ajudam o produtor brasileiro a enfrentar pragas e doenças nas lavouras, assim como contribuem para reduzir a necessidade de uso de fertilizantes. A história da descoberta do rizobio já foi contada aqui, nesta coluna.

Adjacente ao banco genético está a estação quarentenária. Outra estrutura estratégica para a segurança nacional. É ali que, desde 1977, plantas, animais e microrganismos que são introduzidos no Brasil passam por uma quarentena. O tempo de espera é variável. O objetivo é único: impedir que pragas e doenças inexistentes no país possam atacar nossa agricultura e pecuária. Uma nova estrutura foi inaugurada em 2021. Desde sua criação, a estação quarentenária já analisou mais de 800 mil amostras e impediu a entrada de mais de 90 pragas e doenças. O exemplo da COVID-19 é emblemático neste caso: um vírus foi capaz, infelizmente, de matar milhões de pessoas em todo o mundo. A ciência foi a saída para a solução da pandemia. Imagine o estrago que apenas uma praga ou doença que não fosse barrada pela estação quarentenária poderia fazer ao agro brasileiro.

Em tempos de mudanças climáticas, El Niño, enchentes e secas, vários países buscam estabelecer bancos genéticos em seu território. Sabem que é uma questão de segurança nacional. A Arca de Noé do agro brasileiro é uma das garantias de que teremos segurança alimentar para as próximas gerações. É imperativo que siga sendo apoiada com recursos materiais e financeiros.    

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