
Welber Barral
Conselheiro da Fiesp, presidente do IBCI e ex-secretário de Comércio Exterior do Brasil
Esse texto trata de uma opinião do colunista e não necessariamente reflete a posição do Agro Estadão
Opinião
Por que a reciprocidade trumpista não funciona: o caso do etanol
Em declarações recentes, o ex-presidente Donald Trump ressuscitou o conceito de “reciprocidade” nas relações comerciais, afirmando que “se eles nos cobram, nós cobramos deles”
26/02/2025 - 08:00

Embora essa ideia pareça, à primeira vista, uma solução justa, ela reflete uma visão simplista do comércio internacional que ignora décadas de evolução nas regras multilaterais. A proposta de Trump de aplicar tarifas recíprocas exemplifica uma compreensão equivocada das dinâmicas comerciais e sugere uma solução que, na prática, é inviável.
Com efeito, o debate tarifário sobre etanol entre Estados Unidos e Brasil é um exemplo claro de porque “olho por olho” não funciona no comércio internacional. Embora a ideia de reciprocidade pareça intuitivamente equitativa, a realidade do comércio global é muito mais complexa, envolvendo variáveis econômicas, políticas e ambientais que não podem ser simplificadas a uma mera repetição de tarifas.
A evolução das regras de comércio multilateral
O comércio internacional é regido por acordos multilaterais que evoluíram ao longo de décadas, baseando-se em regras sofisticadas e complexas. O Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT) e seu sucessor, a Organização Mundial do Comércio (OMC), estabeleceram o princípio da Nação Mais Favorecida (MFN). Por este princípio, qualquer concessão tarifária feita a um país é estendida a todos os membros, promovendo previsibilidade e equidade no comércio global.
Essa abordagem multilateral foi construída ao longo de várias rodadas de negociações, resultando na redução gradual de tarifas e barreiras comerciais desde 1947. Seguramente, o sistema nunca foi perfeito. Alguns países “caroneiros” frequentemente se beneficiaram de concessões desiguais, enquanto nações em desenvolvimento receberam exceções para se adaptarem à competição global. A agricultura, em particular, sempre foi um ponto de atrito, com tarifas e cotas mais altas devido a fatores históricos e sociais.
Por isso, a insistência de Trump em uma reciprocidade bilateral desafia essa estrutura. Ao focar em negociações país a país, com base em tarifas específicas, ele ignora os benefícios da cooperação multilateral e os mecanismos que impulsionaram o crescimento do comércio global. Na prática, a implementação de estrita reciprocidade enfrenta desafios significativos que minam os princípios que sustentam a prosperidade global desde o pós-Segunda Guerra Mundial.
Problemas na implementação de estrita reciprocidade
Há várias razões pelas quais a abordagem de Trump em relação à reciprocidade é não apenas equivocada, mas praticamente inviável:
- Complexidade na implementação: Para alcançar a reciprocidade estrita, seria necessário que as autoridades aduaneiras verificassem milhares de diferentes alíquotas tarifárias, ajustando-as com base na origem dos produtos. E, dada a natureza globalizada das cadeias de suprimentos modernas, determinar a verdadeira origem das mercadorias já é extremamente complexo.
- Motivações divergentes para tarifas: As razões para medidas protecionistas variam amplamente entre os países. Nos EUA, as tarifas muitas vezes refletem considerações políticas internas, como proteger indústrias em estados-chave para eleições. Já em outros países, as tarifas podem estar relacionadas a necessidades econômicas locais ou fatores geopolíticos.
- Diferenças dentro das classificações tarifárias: Mesmo dentro da mesma classificação tarifária, os produtos podem diferir significativamente em qualidade, composição ou uso. Isso torna um sistema de tarifas recíprocas inerentemente ineficiente, pois não considera as dinâmicas de precificação específicas de cada produto.
- Dinâmicas de mercado e necessidades de importação: Algumas importações são essenciais para um país, independentemente do aumento de tarifas. Ao impor tarifas mais altas, pode-se apenas deslocar a origem das importações, sem reduzir o volume total. Em alguns casos, as tarifas simplesmente aumentam os custos, sem beneficiar a indústria local, já que produtores e consumidores se adaptam às novas realidades de preços.
Exemplo de incompreensão comercial
O debate sobre o etanol entre EUA e Brasil ilustra perfeitamente porque a retórica da reciprocidade falha ao ignorar as complexidades do comércio internacional. Atualmente, o Brasil impõe uma tarifa de 18% sobre as importações de etanol dos EUA, enquanto os EUA cobram apenas 2,5% sobre o etanol brasileiro. À primeira vista, a situação parece uma injustiça que justificaria uma retaliação tarifária. No entanto, uma análise mais profunda revela fatores subjacentes complexos:
- Variações sazonais na produção: O comércio de etanol é fortemente influenciado pela sazonalidade das colheitas. Os ciclos de produção e as condições climáticas afetam a competitividade do etanol brasileiro (feito de cana-de-açúcar) em comparação ao etanol norte-americano (feito de milho).
- Considerações ambientais: O etanol brasileiro, produzido a partir da cana-de-açúcar, é mais eficiente e sustentável do que o etanol de milho dos EUA. A cana-de-açúcar tem maior rendimento energético e é considerada carbono-neutro, o que torna o etanol brasileiro mais atraente para consumidores que buscam reduzir suas pegadas de carbono.
- Fatores econômicos internos: A tarifa elevada do Brasil sobre o etanol é justificada pela necessidade de proteger a produção local no Nordeste, região menos desenvolvida na produção e mais próxima dos EUA.
- Tarifas dos EUA sobre o açúcar: Enquanto os EUA reclamam das tarifas brasileiras sobre o etanol, eles mantêm altas tarifas sobre o açúcar, igualmente derivado da cana-de-açúcar. Se a intenção fosse promover um mercado justo e eficiente, a abordagem mais racional seria negociar a redução das tarifas norte-americanas sobre o açúcar em troca da diminuição das tarifas brasileiras sobre o etanol.
Protecionismo vs. Eficiência Comercial
Embora medidas protecionistas possam oferecer ganhos políticos de curto prazo, as consequências econômicas da reciprocidade tarifária de Trump são problemáticas. A indústria de açúcar dos EUA, por exemplo, é altamente protecionista e exerce forte influência política. Um acordo racional envolvendo açúcar e etanol, como mencionado, enfrentaria um lobby poderoso nos EUA.
Além disso, a aplicação de tarifas recíprocas não resolve os problemas de competitividade e eficiência. Pelo contrário, pode aumentar os custos para consumidores e empresas, além de desencadear retaliações que prejudicam as cadeias globais de valor.
Reciprocidade além das simplificações
A reciprocidade no comércio internacional não é uma questão simples de “igualar tarifas”. Ela envolve negociações complexas que consideram fatores econômicos, ambientais e políticos. O caso do etanol entre EUA e Brasil demonstra que uma abordagem simplista ignora as dinâmicas sazonais, as vantagens ambientais competitivas e as realidades econômicas regionais.
Se Trump deseja de fato promover um comércio justo, precisará ir além de slogans populistas e abordar as nuances do comércio internacional. O verdadeiro equilíbrio comercial exige negociações multilaterais estratégicas, não meras retaliações tarifárias. Ou, em síntese: reciprocidade real demanda inteligência econômica e diplomática, não simplificações políticas.

Newsletter
Acorde
bem informado
com as
notícias do campo
Mais lidas de Opinião
1
A moeda dos Brics
2
Feiras e exposições reforçam o protagonismo da pecuária paulista
3
Genes e Algoritmos: a nova engenharia do mundo
4
Política agrícola: esperando agosto
5
A transparência que devemos cultivar em Transição Energética
6
Insegurança jurídica setorial e seus reflexos na Economia e na atração de investimentos internacionais

PUBLICIDADE
Notícias Relacionadas

Opinião
Insegurança jurídica setorial e seus reflexos na Economia e na atração de investimentos internacionais
Setores como infraestrutura, energia limpa, bioeconomia e exportações também sentem os reflexos de um ambiente regulatório volátil

Marcello Brito

Opinião
A moeda dos Brics
Uma moeda comum entre os países do BRICS segue distante; o que pode evoluir são os sistemas interligados de pagamento

Welber Barral

Opinião
Feiras e exposições reforçam o protagonismo da pecuária paulista
Investimentos em genética, manejo, nutrição e bem-estar animal garantem produtos de alta qualidade para o consumo interno e para exportação

Tirso Meirelles

Opinião
Genes e Algoritmos: a nova engenharia do mundo
A convergência entre inteligência artificial e biotecnologia está transformando o mundo que conhecemos, de forma acelerada e irreversível.

Celso Moretti
Opinião
Política agrícola: esperando agosto
Depois que China, União Europeia, Japão e outros países fecharam acordos com os EUA, Brasil faz o que pode enquanto aguarda a sexta-feira

José Carlos Vaz
Opinião
A transparência que devemos cultivar em Transição Energética
Setor de biocombustíveis enfrenta dano causado por distribuidoras que não cumpriram metas de aquisição de Créditos de Descarbonização (CBIOs)

Francisco Turra
Opinião
O Brasil precisa voltar a produzir ureia – e com urgência
A vulnerabilidade na oferta de fertilizantes compromete a produtividade, eleva os custos e ameaça a competitividade do campo

Celso Moretti
Opinião
Terras raras e os interesses do Brasil
Detentor de reservas relevantes mas pouco exploradas, país precisa de estratégia para não repetir papel exportador de matérias-primas.

Welber Barral