José Carlos Vaz
Advogado e consultor, mestre em direito constitucional, ex-secretário de Política Agrícola do Ministério da Agricultura
Esse texto trata de uma opinião do colunista e não necessariamente reflete a posição do Agro Estadão
Opinião
Política Agrícola: inovação institucional e reengenharia
No artigo anterior, desta semana, em que seriam feitos os anúncios dos novos planos safra, escrevi que é usual quando se encerra/inicia um período de safra, fazer um balanço de como foi o plano anterior e projetar como será o novo
8 minutos de leitura 27/06/2024 - 05:30
Naquele texto projetei como poderia ser o Plano Safra da agricultura “familiar”. Neste, faço a avaliação e mesma projeção para os planos safra 2023/2024 e 2024/2025, respectivamente, da agricultura “agronegocial”. Com base nos desembolsos do crédito rural, foram/serão “um sucesso”. Com base na mitigação de riscos climáticos, foram/serão “um fracasso”.
O novo plano tende a ser o ápice de uma desconfortável sucessão de “não-soluções”, típica de ministro sem força política (que deve ter tido os mesmos problemas de sempre para o ministério da Agricultura, em governos em que o PT comanda a Casa Civil: “Arriba, MDA! Tranqüilo, tranquilo, Agro!”).
Não é crível que o novo plano trará mudanças estruturais na política agrícola. Não instituirá uma política consistente para o crédito aos produtores de porte médio, nem de mitigação dos riscos climáticos da região centro-sul. Não trará avanços efetivos na institucionalização de mais acesso a recursos externos pelos produtores rurais. Não ensejará aumento na transparência e “justiça alocativa” das isenções fiscais embutidas nos títulos do agronegócio.
Parece que o plano 2024/2025 da agricultura “agronegocial” será mais do mesmo crédito rural bancário de sempre. O “melhor de todos” em volume, mas não em termos de taxas, com mais recursos, menores taxas, em algumas linhas, cheio de programas de investimento iguais, com nomes diferentes. Também “ordinário”, com alto custo operacional, concentrado nos bancos públicos e nas cooperativas de crédito, com falhas na distribuição dos subsídios.
Um plano safra retoricamente complementado pelo “mercado”, por meio dos capciosos contratos barter, onde o produtor fica à mercê de cinco a oito corporações mundiais, e pela esquisita isenção fiscal, via CDCA e CRA, para operadores de maior poder econômico.
Frustrado, deixo de falar sobre o ano agrícola 2024/2025, no qual, para os médios e grandes produtores rurais, com as margens e a liquidez apertadas, a válvula de escape terá que ser a prorrogação de dívidas. Prefiro comentar sobre o que seria uma “reengenharia da política agrícola”.
Uma política agrícola como a desenhada nos planos safra anteriores, e provavelmente repetida no plano safra 2024/2025, manterá a alocação de recursos públicos conforme a força econômica ou eleitoral do setor beneficiado.
Nos últimos 30 anos, uma corporação de burocratas tem controlado a execução fiscal de qualquer governo, qualquer que seja seu matiz, mediante regulação de “torneiras” conforme o seu interesse: conta única; restos a pagar, disponibilidade do Siafi, limite de empenhos, junta orçamentária, teto de gastos, interpretação “elástica” das regras de orçamentação e execução e da competência para propor seu escopo, IOF, monopolização do CMN, execução de emendas parlamentares, etc.
No que se refere à política agrícola, a burocracia, ao longo do tempo, sequestrou para a área econômica competências do ministério da agricultura, deu respaldo a metodologias obscuras para a classificação de risco de operações de crédito rural, tributou o crédito rural com IOF (dá com uma mão, tira com a outra), desperdiçou recursos públicos com taxas negativas em operações de crédito rural para finalidades menos prioritárias, queimou recursos dos depósitos à vista na fogueira dos juros bancários comerciais, distribuiu subsídios ocultos via benesses tributárias, por exemplo quando não se afere o perfil dos emissores dos recebíveis vinculados a um CRA ou adquiridos por um Fiagro.
Mesmo sob domínio de uma realidade dura como a acima mencionada, não se deve deixar de sonhar com um novo ciclo da política agrícola, que não seja o da ausência de política pública, ou de preservação de privilégios, mas onde se dê paulatinamente a substituição do modelo operativo atual por um que, considerando os fundamentos valorativos previstos na Constituição Federal e na Lei 8.171/1991, tenha processos modernos, com instrumentos mais eficientes na utilização e distribuição dos recursos públicos e mais efetivos na concretização dos objetivos pretendidos pela sociedade e pelo setor rural.
Um primeiro passo seria reativar e energizar o Conselho Nacional de Política Agrícola (CNPA), dando competência para propor ao Congresso um plano de diretrizes da política agrícola, estabelecendo objetivos e metas a serem atingidas em um período de dez anos, e o seu correspondente plano plurianual, definindo os recursos públicos que deverão ser obrigatoriamente alocados e disponibilizados à execução da política agrícola, nos orçamentos anuais relativos aos exercícios previstos no plano de diretrizes.
Afinal, para um orçamento anual de custeio de R$ 1 trilhão, e um de investimento de R$ 250 bilhões, o governo só comparece com uns R$ 20 bilhões em subsídios e uns R$ 30 bilhões em isenções. Quem banca a produção é o produtor rural, direta ou indiretamente, por meio dos demais elos da cadeia produtiva. Não se pode deixar só o governo decidir os rumos do agro brasileiro.
Para dar autonomia ao agronegócio, seria criado via emenda constitucional um fundo composto, entre outras fontes, por um percentual da arrecadação de tributos federais cujo fato gerador esteja em negócios realizados por bancos, seguradoras, financeiras, investidores, fornecedores de insumos ou compradores de produtos agropecuários diretamente com produtor rural, ou com cooperativa de produção atuando como produtor rural.
Caberia àquele fundo, gerido pelo CNPA, a responsabilidade (não exclusiva) pelas despesas de custeio e investimento inerentes à execução da política agrícola. A emenda constitucional estabeleceria uma provisão fiscal para suporte à política agrícola (uma vinculação da arrecadação de tributos federais), destinada a cobrir, até um limite previsto nos planos plurianuais, eventual déficit no exercício dos programas.
Por meio da análise de base de dados própria, seriam estabelecidas quatro classificações de porte, segundo a renda para o produtor rural: pequeno não empresarial – o pequeno produtor familiar sem capacidade técnica e substância econômica reconhecidas – ; pequeno empresarial – abrangendo parte do público atual do Pronaf – , médio empresarial – parte de maior renda do Pronaf, todo o Pronamp e parte de menor renda dos atuais “demais produtores” – , e grande empresarial.
A Apuração do Resultado da Atividade Rural do imposto de renda seria usada para incentivar a formação de provisões de capital pelo produtor rural, a serem utilizadas em anos de menor renda; para a alocação de subsídios à renda efetiva; para orientação da matriz tecnológica dos empreendimentos rurais no rumo de melhores padrões de sustentabilidade, gestão técnica e governança.
O “patrimônio rural em afetação”, em formato legislativo mais amplo, implementaria a segregação patrimonial e financeira de produtores rurais pessoas naturais (PF), de pequeno ou médio porte, bem como o registro de ônus e gravames de bens vinculados à atividade produtiva rural, dando segurança jurídica e transparência de riscos para os investidores.
Nas cédulas de produto rural (CPR), seria incentivado o uso de cláusulas pré-determinando parâmetros objetivos para definir quais eventos naturais, e em que intensidade, ensejariam uma renegociação dos prazos de entrega ou pagamento; como seria caracterizada, e por quem, a ocorrência do evento prejudicial à renda do produtor; como será estabelecida a quantidade/valor a ser objeto de alongamento, em quantas parcelas e em que periodicidade; como seria o rateio da produção obtida, no que se refere à manutenção do produtor rural e da propriedade, bem como quanto à formação da nova safra e ao pagamento de outras dívidas.
Todos os produtores rurais beneficiários em algum instrumento de política agrícola teriam que aderir a um “contrato permanente de mútuo”, amparando um seguro para a indenização do custo de produção, quando ocorrer frustração de renda por conta de intempéries climáticas, pragas ou doenças.
O Ministério da Agricultura seria o único gestor das políticas públicas para todos os produtores. Seriam estabelecidas segregações entre as áreas de normatização, fiscalização e penalizações do Ibama, Anvisa, Incra e Defesa Agropecuária, com a criação de uma única agência de fiscalização rural, que faria convênios com entes estaduais e municipais e de um único conselho administrativo federal para sanções e recursos atinentes a estabelecimentos rurais. Caberia ao MDA (ou ao MDS) desenvolver políticas de renda, capacitação e desenvolvimento para “moradores rurais” e “pequeno produtor não empresarial”.
Saindo da “dimensão dos sonhos” e voltando para a “realidade do prato de feijão”, é preciso considerar que provavelmente voltaremos a ter um mundo dividido política e comercialmente, onde o Brasil tenderá à neutralidade, com alguma beligerância retórica episódica contra os EUA ou a China, conforme a ideologia do governo do momento.
Isso significará ficar reservado a uma posição de supridor eventual de commodities tanto para a UE e os EUA, quanto para a China, sendo que esta última manterá a preponderância na balança comercial brasileira, mas dará preferência aos compromissos assumidos com os países aliados e não se furtará a cancelar negócios com o Brasil, para aproveitar oportunidades de preços melhores, até mesmo em transações comerciais com o outro bloco.
A perseguição da autonomia e sustentabilidade na produção de energia e alimentos dentro do país terá que ser intensificada, e boa parte dos investimentos necessários terá que vir por meio da captação de recursos externos. O Brasil precisará aumentar as exportações do Agro, reconfigurar as formas estatais, aumentar a competição entre os agentes econômicos privados, abrir os mercados, reduzir a “complexidade Brasil” e o “custo Brasil”. Ou seja, inovar institucionalmente.
Não se trata de ter uma política agrícola, mas diversas, específicas para cada público demandante. Isso não precisaria tanto recurso público a mais do que se tem atualmente, mas sim buscar a otimização da forma de alocação dos subsídios, direcionando os montantes para aquelas pessoas e àquelas atividades que realmente precisam de apoio e/ou incentivo. E não descuidando da pesquisa.
Aguardemos o desenlace do novo plano, sua divulgação e sua operacionalização. Que tenha bons resultados!
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