Agropolítica
Agronegócio do RS endividado: “Não é um problema do agricultor, é um problema do Brasil”, afirma secretário da pasta
Três meses após enchentes no Rio Grande do Sul, secretário de Agricultura diz que ajuda federal "é tímida e insuficiente"
11 minutos de leitura 29/07/2024 - 05:00
Fernanda Farias | Porto Alegre | fernanda.farias@estadao.com
Três meses após as fortes chuvas que provocaram enchentes e inundações em 390 municípios, o Rio Grande do Sul ainda tenta se recuperar. A principal perda foi a morte de mais de 180 pessoas. A economia vem sofrendo consequências do desastre climático e o agronegócio gaúcho é um dos setores diretamente afetados. Afinal, mais de 206 mil propriedades rurais sofreram danos em diferentes níveis.
Praticamente todos os agricultores atingidos ainda nem tinham se recuperado financeiramente da estiagem que quebrou a produção na última safra. E, por isso, a preocupação do setor e do governo estadual é como essa produção seguirá daqui para frente.
“A falência no meio rural está decretada”, afirma o secretário de Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação do Rio Grande do Sul, Clair Kuhn. Uma das alternativas levantadas para ajudar o agricultor gaúcho é a securitização das dívidas, a exemplo do que já foi feito no Brasil na década de 1990. Esse alongamento das dívidas foi pedido ao governo federal logo após as enchentes. Mas o setor produtivo e o governo estadual reclamam que, até agora, não houve uma ação efetiva de ajuda.
“O que o governo federal vem fazendo é insuficiente, tímido. Nosso produtor está desassistido, tem produtor que não sabe o que vai fazer. E quem tem condição de ajudar é o ente federativo, porque o estado do Rio Grande do Sul também está impactado”, diz Kuhn.
Em entrevista ao Agro Estadão, o secretário critica a lentidão do governo federal em realizar ações efetivas de ajuda ao agronegócio, fala sobre as promessas que aconteceram a partir de reuniões com os ministros [da Agricultura e da Reconstrução do RS], e o que essa demora pode provocar na economia não só do estado, mas também do país.
Há pouco mais de trinta dias à frente da pasta, Kuhn traz a experiência de ter sido prefeito e vereador em Quinze de Novembro, onde também é produtor rural – ele mantém criação de gado de corte em sete hectares no município. Entre os desafios, também está a organização da 47ª Expointer – tradicional feira agropecuária que é realizada em Esteio, na região Metropolitana de Porto Alegre – prevista para acontecer entre 24 de agosto e 1º de setembro.
Confira a entrevista:
Agro Estadão – Como o senhor avalia a recuperação da agricultura do Rio Grande do Sul?
Secretário da Agricultura do Rio Grande do Sul, Clair Kuhn – O Rio Grande do Sul vem passando por ações climáticas que fogem do controle do produtor, que é um produtor tecnificado, altamente especializado e que conserva o meio ambiente. Tanto é que daqui saíram muitos produtores para o restante do Brasil e conseguiram ajudar no desenvolvimento de outros estados. Mas com duas estiagens fortes em partes do estado [2021 e 2022] e no ano passado, uma seca que atingiu o estado todo, agravado agora por 30 dias de chuva ininterruptos, que além de levar muita água ao solo, em todas as regiões, levou a fertilidade e, em outras levou completamente o solo também. Nós tivemos um prejuízo incalculável…os nossos técnicos, especialistas de solos, doutores em solo das universidades, Embrapa, Emater… ainda não conseguem dizer exatamente quanto é o prejuízo pro produtor. E o produtor precisa de um socorro financeiro, porque ele não tem mais condições. Ele deve para banco, agropecuária e cooperativa – ele não tem mais onde buscar recursos.
Agro Estadão – O que o produtor precisa nesse momento?
Clair Kuhn – Ele precisa de securitização, como já houve no Brasil. Ele precisa pegar as dívidas dessas ações climáticas que ele não pode pagar suas contas, colocar todas em um pacote para pagar em 15 anos. Isso daria condições ao produtor buscar crédito novamente. Mas temos outro problema, que são as seguradoras que garantem os recursos, elas começaram a se afastar do RS por causa dos problemas climáticos ano após ano e estão com taxas de juros muito altas. E aí nós precisamos da força do governo federal para dar o aval garantidor para que as instituições possam oferecer um novo crédito ao produtor rural. E em pontos críticos de calamidade, o produtor precisa de uma anistia total, porque ele não tem como recomeçar.
Agro Estadão – Isso está sendo avaliado pelo governo federal, que está indo ao estado. Em duas visitas, houve entrega de máquinas agrícolas, por exemplo, a partir de emendas parlamentares. Qual a sua avaliação dessas entregas?
Clair Kuhn – Não podemos negar que são máquinas para os municípios importantes, mas isso é um grão de areia no que nós precisamos. Precisamos de no mínimo dois a três anos para começar a pagar, e as dívidas prorrogadas por 15 anos e juros de 3%. Então o que o governo federal vem fazendo é insuficiente, tímido. Nosso produtor está desassistido, tem produtor que não sabe o que vai fazer. E quem tem condição de ajudar é o ente federativo, porque o estado do Rio Grande do Sul também está impactado. O governo federal acenou em uma compra de arroz, sendo que o IRGA mostrou por dados e números de colheita que o arroz produzido no RS será suficiente para manter o mercado estável no Brasil inteiro. O governo disponibilizou R$ 7 bilhões para comprar arroz, então esse recurso já existe. É só realocar como um incentivo para que as seguradoras possam colocar dinheiro novo no RS também.
Agro Estadão – O que o ministro da Agricultura fala nas reuniões?
Clair Kuhn – Tanto o Fávaro quanto o Pimenta dizem que “estão estudando”, que “estão vendo”, que “vai ter uma medida”, que “pode ter possibilidades”, mas de concreto nada veio. Nós fizemos uma missão a Brasília, com Fetag, Farsul, Ocergs e outras instituições e mostramos ao presidente da Câmara, o [Arthu] Lira, que tudo que foi anunciado, nada chegou ao Rio Grande do Sul. E mostramos também ao presidente do Senado, o [Rodrigo] Pacheco. Então, imagina algo que não foi anunciado que é a agricultura?
“O agricultor gaúcho já perdeu praticamente tudo, só falta perder a paciência, mas está confiando nos poderes, ainda. Na verdade, o agricultor está perdendo a estabilidade emocional.” Clair Kuhn, secretário da SEAPI.
Agro Estadão – O governo federal diz que está estudando. Três meses não é tempo suficiente, na sua avaliação?
Clair Kuhn – O governo tem todos os mecanismos na sua mão, tem toda a questão financeira dos produtores, ele tem o IR pra ver, tem os financiamentos dos produtores, através das instituições financeiras. O governo federal tem o mecanismo para saber quanto está devendo e quem está devendo. O Rio Grande do Sul tem que ser tratado diferente nesse momento diferente, não pode dizer nos corredores, “os outros estados também vão querer”. Os outros estados estão enxergando a calamidade do RS! Os outros estados estão ajudando o RS! E o governo federal usa, quem sabe, a desculpa de que “não podemos fazer uma medida muito maior de recuperação porque, quem sabe, os outros estados queiram”. É um momento diferente. Tivemos três secas e a última seca foi em todo o estado, e agora com inundação em 390 municípios, em situação de calamidade ou situação de emergência decretados e reconhecidos. O nosso produtor reflete na economia do Brasil, não só do estado. A falência no meio rural já está decretada. E ela vai refletir diretamente nos 497 municípios do RS. Se o produtor está devendo na coooperativa, a cooperativa tem problema financeiro. Se o produtor está devendo na agropecuária, a agropecuária tem problema financeiro. Na loja, mercearia…Isso vai dar uma cadeia de desemprego nas cidades, especialmente nas cidades menores do RS que são 100% agrícolas, que o comércio das cidades vive disso. Eu tenho chamado a atenção do governo federal de que esse efeito de cascata vai chegar no metalúrgico. Porque a indústria de máquinas vai parar de vender – então não é um problema só do agricultor, é um problema do Brasil.
Agro Estadão – O Rio Grande do Sul pode quebrar?
Clair Kuhn – Não digo que quebre, mas nós temos que achar mecanismos e formas de recuperar e a agricultura gera 40% das riquezas do RS, diretamente. E o RS acabou de sair de uma situação que não conseguia nem pagar salários em dia no passado, e começamos a organizar. E quando você vê uma redução de produtividade como a seca do ano passado, economicamente ela é nefasta, reflete em seguida em ações que o estado e os municípios não conseguirão cumprir com obrigações constitucionais, saúde e educação.
Agro Estadão – O governo federal prometeu uma Medida Provisória para o dia 30 de julho. Há informações de que o perdão das dívidas não deve estar na MP. Diante disso, até onde o agricultor gaúcho consegue segurar?
Clair Kuhn – Temos duas situações. Tem agricultor que perdeu tudo, perdeu casa, instalações, animais, inclusive perdeu familiares. E perdeu o solo produtivo. Ele não tem mais tempo pra esperar, ele tem que ter uma anistia. E tem o produtor que precisa da repactuação, uma securitização. Ele também não tem mais como esperar, ele não vai conseguir plantar a safra de verão. Se usar adubo vai ser de baixa qualidade, se tiver 100 hectares, vai plantar 50. Dizer que está sensível sem ter uma ação plausível, sem ter uma ação de recuperação do estado, nós não aceitamos mais. Nas enchentes, nós tivemos a sensibilidade do povo brasileiro, mas agora o governo tem que ter sensibilidade. E além de sensibilidade, tem que ter ação.
Agro Estadão – O que o agricultor pode esperar das autoridades envolvidas?
Clair Kuhn – O agricultor gaúcho já perdeu praticamente tudo, só falta perder a paciência, mas está confiando nos poderes, ainda. Na verdade, o agricultor está perdendo a estabilidade emocional. Ele dormiu vendo uma situação, vendo os animais, vacas de leite, vendo o seu milho, trator. Anoiteceu, teve que sair correndo da propriedade e, 20 dias depois, voltou para uma terra desolada. Ele está perdendo a autoestima. O governo federal precisa olhar isso. E ele está aqui, está ouvindo os produtores.
Agro Estadão – O ministro Paulo Pimenta [da Reconstrução do RS] está aqui acompanhando e vendo de perto…
Clair Kuhn – O que eu tenho enxergado é que ele tem visitado todo o estado, com uma equipe muito grande que o acompanha. E resultados desse trabalho para o agro, até o momento, não tenho visto uma ação condizente com o caos e desespero dos nossos agricultores.
“Dizer que está sensível sem ter uma ação plausível, sem ter uma ação de recuperação do estado, nós não aceitamos mais. Nas enchentes, nós tivemos a sensibilidade do povo brasileiro, mas agora o governo tem que ter sensibilidade. E além de sensibilidade, tem que ter ação”. Clair Kuhn, secretário de Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação do RS
Agro Estadão – Uma avaliação dos 30 dias como secretário de Agricultura do RS?
Clair Kuhn – Fechou os 30 dias no dia 20 de julho, mas eu estive na pasta desde o início do governo como diretor geral adjunto. O desafiador é continuar de pé com o programa de irrigação, estamos trabalhando em um programa de solos para chegar ao produtor, e, logicamente, botar uma Expointer de pé até o dia 24 de agosto.
Agro Estadão – A Expointer vai ser como um símbolo de retorno?
Clair Kuhn – Quanto mais próximo da data, ela se torna mais procurada. Na agricultura familiar, já temos mais agroindústrias inscritas do que na edição passada. Muitas porque é uma forma de retomar os negócios. O governador do estado, em cima do apelo das entidades, determinou a reconstrução do parque [de Exposições Assis Brasil]. Nós vamos estar com o parque pronto, estamos trabalhando acessos com linhas de ônibus, para que todo o público possa chegar. Eu me animo a dizer que é uma feira de reconstrução, resiliência, de inovação, mas também de solidariedade. E vai ser o momento de agradecer a todos que ajudaram no momento mais crítico, que foi naqueles 20, 30 dias de inundação, de resgate de vidas e que o Brasil inteiro foi muito solidário. Os holofotes estarão todos virados para a Expointer e ela será cada um dos produtores, das empresas e dos gaúchos agradecendo e também mostrando que ainda precisamos trabalhar muito e somos resilientes para reconstruir o nosso Estado.
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