Economia
Blairo Maggi: "2024 é um ano decisivo para a CPR"
A história da CPR é longa e dá orgulho. Soja e CPR são indissociáveis
Blairo Maggi - ex-ministro da Agricultura
28/05/2024 - 10:27
Este ano, a Cédula de Produto Rural (CPR) completa 30 exitosos anos de vida. A engenharia da CPR é representar a produção a ser entregue no futuro. Com ela, o produtor rural passou a tomar crédito dando como garantia sua produção. E do lado do comprador, a CPR representa o que o exportador e o processador querem: a segurança de receber o produto agrícola colhido e que foi comprado antecipadamente. A CPR tornou viável a junção de duas necessidades: a do produtor de buscar parceiros para garantir a venda de sua produção futura e se proteger das oscilações de preço, tanto dos insumos quanto da produção, colocando sua safra futura como garantia primária, bem como da agroindústria, de garantir o fornecimento dos produtos agrícolas fomentando a produção. O sucesso da soja e do milho no Brasil está diretamente ligado à CPR. O título trouxe liquidez e hedge de preço ao produtor e garantia de originação para o comprador.
Nesses anos, muita coisa aconteceu com a CPR. Sua história pode ser quebrada em três partes: evolução legislativa, que começou há três décadas e ganhou importantes atualizações recentes; os desafios jurídicos relacionados às recuperações judiciais; e o risco legislativo que a CPR está sofrendo neste momento.
No Governo Collor, foi feito um processo de desregulamentação do setor agropecuário no Brasil. Em 1992 foi sancionada uma lei que mudou o sistema de financiamento oficial. A chamada lei da subvenção do crédito rural (lei 8.427/1992) criou o modelo vigente até hoje no qual o Tesouro Nacional arca com a diferença entre o custo da fonte de financiamento e a taxa de juros cobrada do tomador, chamada de equalização do crédito rural.
Só que a disponibilidade de recursos para o crédito rural era insuficiente para a demanda por financiamento. A lei da subvenção suscitou importantíssimo debate no Brasil na época: como estimular o setor privado a suprir a necessidade de crédito das safras, tendo em vista que o oficial tinha capacidade limitada e o mercado financeiro não queria, na época, tomar o risco da produção agropecuária.
Nesse contexto, nasceu a precursora da CPR: as operações de “soja verde”. Os exportadores e indústrias de processamento de soja, ou seja, aqueles que queriam receber soja, passaram a oferecer contratos de compra futura de soja embasados legalmente em dispositivos dos códigos civil e comercial da época. Tratavam-se de contratos de compra e venda de entrega futura com fomento ao produtor seja via pagamento antecipado, seja via fornecimento de insumos.
As garantias da soja verde variavam muito, desde avalistas, garantias pessoais, garantia pignoratícia (penhor rural), às vezes até com vinculação de mais de uma garantia . Os contratos de soja verde chegaram a representar até 50% da produção de soja. A soja verde, no entanto, sofreu, nas safras 1992/93 e 1993/94 de inadimplências devido ao descasamento entre o preço de venda antecipado e os maiores preços de mercado na entrega da safra. Na época, os compradores amargaram grandes perdas porque não tinham ferramentas contratuais, nem conhecimento no judiciário, para fazer valer os contratos de soja verde.
A CPR, então, veio como a solução para resolver as imperfeições dos contratos de soja verde e garantir a segurança jurídica aos negociantes, tanto para os vendedores quanto aos compradores dos produtos agrícolas. Em 1994 é aprovada a lei que cria o título. O executivo federal, conhecendo os problemas da soja verde e a necessidade de estimular o crédito comercial privado para o setor agrícola, envia um projeto de lei para o Congresso Nacional. Na tramitação, parlamentares como Jonas Pinheiro, Germano Rigotto, Geraldo Alckmin, Ronaldo Caiado, Nelson Marquezelli, Abelardo Lupion e Moacir Micheletto foram centrais para aprovar o projeto de lei.
Em 2020, a CPR ganha um importante aprimoramento com a publicação da Lei do Agro (lei 13.986/2020), que estabeleceu que as CPRs deveriam ser registradas eletronicamente em entidade autorizada pelo Banco Central para fins de transparência dos volumes contratados e para reduzir as incertezas sobre os títulos lastreados nelas. Também em 2020, fruto da alteração da lei de falências e recuperação judicial (lei 14.112/2020), a CPR atrelada a fomento, ou seja, com antecipação parcial ou integral do preço, ou, ainda, representativa de operação de troca por insumos (barter), se tornou extraconcursal para fins de recuperação judicial, justamente para impedir que a produção pudesse ser vendida duas vezes, como vinha ocorrendo em recuperações judiciais oportunistas de produtores rurais. A Frente Parlamentar da Agropecuária teve papel central na viabilização destes aprimoramentos.
A segunda parte da história da CPR foi a consolidação do seu conhecimento e entendimento pelo judiciário. O judiciário passou a ser acionado por produtores rurais requerendo recuperações judiciais. No pacote das RJs, os produtores solicitavam a inclusão das CPRs no período de suspensão e blindagem, almejando se livrar da obrigação de entregar a produção atrelada à CPR e vendida de forma antecipada. Entre 2017 e 2020 houve uma leva grande de RJs que seguiam modelo semelhante: elas eram requeridas na iminência da colheita e o produtor solicitava incluir a produção já vendida no período de suspensão e blindagem.
Foi no contexto dessa leva de RJs que o Congresso Nacional, sabiamente, se sensibilizou para o problema e alterou a lei tornando expresso que a CPR física com fomento não se sujeita aos efeitos de uma recuperação judicial. Foi uma importante vitória para a proteção da CPR. Essa modificação legislativa trouxe a necessidade do judiciário se aprofundar no entendimento de como funciona uma CPR e seus benefícios para a produção agropecuária.
Foram feitas muitas tentativas de manobras para levar o judiciário a mudar o entendimento que estava se consolidando. A mais forte delas foi a argumentação de que no caso de CPRs negociadas com pagamento antecipado parcial do volume a ser entregue, o não cumprimento dos contratos, ou seja, a não entrega da produção vinculada à CPR, seria aceitável no contexto de uma RJ. Junto com essa argumentação, veio uma nova afirmando que a produção é um bem essencial e, assim, precisaria ficar à disposição do devedor em recuperação, que ficaria desobrigado de entregá-la ao comprador original.
Como resposta, o STJ consolidou visão de que a produção agrícola não é bem de capital e, assim, não é bem essencial, uma vez que a lei de falências define como essencial apenas os bens de capital imprescindíveis à manutenção da atividade do devedor durante o período de suspensão e blindagem. Esse entendimento do STJ foi mais um passo na direção de fortalecer a CPR e fechar as portas para tentativas de se vender a mesma produção duas vezes, gerando enriquecimento ilícito.
A lógica é que o produtor tomou, voluntariamente, a decisão de vender sua produção com entrega futura, e, para tanto, emitiu CPRs. O comprador pagou antecipadamente em dinheiro ou entregou insumos (fertilizantes, agroquímicos, calcário, etc.) e recebeu as CPRs com a promessa de entrega do volume equivalente de produção. Se o produtor que emitiu a CPR ganhar autorização judicial de não entregar a produção, o sistema de fomento atrelado a CPR morre, e a cadeia do agronegócio, vital para a economia brasileira, se quebra.
A terceira parte da história da CPR ainda está sendo escrita. Trata-se de alteração legislativa que, se aprovada, vai sentenciar de morte o título. O conceito de bem de capital essencial, como expresso na lei de falências e recuperação judicial, não blinda a produção, que é o resultado do uso dos bens de capital essenciais. Ou seja, os bens produzidos devem ser utilizados para o cumprimento das obrigações, tal como a obrigação de entrega da produção objeto da CPR.
A história da CPR é longa e dá orgulho. Soja e CPR são indissociáveis. Para a soja crescer no Brasil, era preciso crédito privado. E ele veio porque a CPR, título líquido e certo, garante a entrega da produção. Sem a CPR a soja não seria o sucesso que é. Até fevereiro de 2024 havia mais de R$ 300 bilhões em estoque de CPR registradas. Matar a CPR vai matar o financiamento privado ao produtor agrícola. Nunca é tarde para se arrepender, e o Congresso Nacional pode facilmente consertar o erro que, desavisadamente, cometeu.
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