Uma moeda comum entre os países do BRICS segue distante; o que pode evoluir são os sistemas interligados de pagamento
O presidente Lula voltou mencionar a criação de uma moeda comum entre os países do BRICS — tema recorrente desde os primeiros encontros do bloco, especialmente em contextos de tensão geopolítica e desafios acelerados pelo governo Trump. Mas em realidade, quais são as reais perspectivas de uma moeda sobrepujar o dólar estadunidense?
A crítica à supremacia do dólar não é novidade. Desde o acordo de Bretton Woods, o dólar consolidou-se como a principal moeda de reserva mundial, instrumento-chave do comércio e, muitas vezes, utilizado como ferramenta diplomática e de imposição de sanções pelos Estados Unidos. O “exorbitant privilege” — expressão cunhada por Giscard d’Estaing nos anos 1960 — traduz não apenas o poder econômico dos EUA, mas também a dependência estrutural que subordina grande parte dos países ao sistema financeiro norte-americano.
O domínio do dólar implica em benefícios como financiamento barato da dívida pública dos EUA e controle amplificado sobre fluxos financeiros globais. Mais e mais, países emergentes veem essa configuração como desequilibrada e buscam fortalecer sua soberania monetária.
Mas criar alternativa monetária não é simples, como demonstrou a experiência europeia. Antes de se tornar o euro, a moeda europeia foi precedida pelo ECU (European Currency Unit), criada em 1979, e usada como referência para transações financeiras entre países membros. Só em 1999, após décadas de negociações, reformas institucionais profundas e convergência macroeconômica, o euro foi lançado para transações eletrônicas; as notas físicas vieram a circular apenas em 2002. O processo foi marcado por etapas gradualistas, criação de instituições supranacionais (Banco Central Europeu), e intensa negociação política.
No caso dos BRICS, os desafios para uma moeda comum são ainda maiores: os países do bloco — Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, e novatos como Irã, Egito, Emirados e Arábia Saudita — possuem níveis de desenvolvimento, regimes cambiais, políticas fiscais e integração financeira bastante distintos. Além disso, os BRICS não possuem nem aspiram instituições supranacionais. Isso sem falar das tensões geopolíticas.
Os BRICS têm privilegiado soluções pragmáticas. O roteiro atual é apostar no uso de moedas locais no comércio intra-bloco e desenvolver infraestrutura para pagamentos descentralizados. O projeto BRICS Pay, em desenvolvimento desde 2019, busca conectar sistemas de pagamentos nacionais. Pilotos já conectam plataformas como o UPI (Índia), MIR (Rússia) e UnionPay (China), além do desenvolvimento de mensageria via blockchain. Em 2025, cerca de 90% do comércio intra-BRICS já ocorre sem recorrer ao dólar. Um motivador do sistema são as sanções dos EUA contra China, Rússia e Irã.
Para os próximos dez anos, as perspectivas são de fortalecimento do BRICS Pay, a expansão do uso de moedas digitais dos Bancos Centrais (CBDCs) e o aprofundamento da interoperabilidade.
Por isso, e malgrado os discursos, a moeda dos BRICS permanece um projeto distante. Por enquanto, há muito barulho por nada. Não há alternativa realista ao dólar, e o que pode evoluir são os sistemas interligados de pagamento em moeda local. O futuro pode reservar surpresas, mas os desafios institucionais e políticos ainda superam as proclamações.